sexta-feira, 16 de julho de 2010

Voto vencido

Voto vencido do desembargador Sideni Soncini Pimentel, do TJMS, em Embargos Infringentes em Apelação Cível - Ordinário - N. 2009.017554-8/0002-00 - Campo Grande, relator Des. Vladimir Abreu da Silva, sobre a cobrança de juros abusivos:

O Sr. Des. Sideni Soncini Pimentel (3º Vogal)
Peço vênia para divergir do entendimento esposado pelo eminente relator, pois entendo que os juros remuneratórios não podem ser superiores a 12% ao ano.

Os Tribunais Superiores sedimentaram o entendimento, no sentido de que o ordenamento jurídico não tolera a liberdade absoluta na pactuação da remuneração de capital. O Decreto 22.626/33, conhecido como Lei da Usura, estabelece um limite à contratação de juros, equivalente ao dobro da taxa legal, de acordo com a previsão contida em seu art. 1º, “caput”, que estabelece: “É vedado, e será punido nos termos desta lei, estipular em quaisquer contratos taxas de juros superiores ao dobro da taxa legal (Código Civil, artigo nº 1.062)”. A Constituição Federal de 1988 limitava em 12% ao ano os juros reais, no art. 192, § 3º, nestes termos: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Este artigo foi revogado pela Emenda Constitucional nº 40/2003.

A Lei 4.595/64 – Lei de Mercado de Capitais – atribuiu ao Conselho Monetário Nacional competência para, entre outras, limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, órgão que jamais editou qualquer parâmetro limitativo.

O Supremo Tribunal Federal, acolhendo tese veiculada pelas instituições financeiras, editou a Súmula 596, preceituando que “as disposições do Dec. Nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integrem o sistema financeiro nacional”. Esse mesmo Tribunal editou, posteriormente (20 de junho de 2008), o verbete sumular vinculante nº 7, dispondo que “a norma do §3º do artigo 192 da Constituição, revogada pela Emenda Constitucional nº 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicação condicionada à edição de lei complementar”.

O Superior Tribunal de Justiça firmou sua jurisprudência no sentido de que a taxa de juros cobrada pelas instituições financeiras não sofre as limitações previstas na Lei da Usura. Vejam-se os arestos, colhidos à ventura, usados como paradigma:
“COMERCIAL. CARTÃO DE CRÉDITO. ADMINISTRADORA. INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. JUROS. LIMITAÇÃO (12% AA). LEI DE USURA (DECRETO N. 22.626/33). NÃO INCIDÊNCIA. APLICAÇÃO DA LEI N. 4.595/64. DISCIPLINAMENTO LEGISLATIVO POSTERIOR. SÚMULA N. 596-STF. CAPITALIZAÇÃO MENSAL DOS JUROS. VEDAÇÃO. LEI DE USURA (DECRETO N. 22.626/33). INCIDÊNCIA. SÚMULA N. 121-STF. I. As administradoras de cartões de crédito inserem-se entre as instituições financeiras regidas pela Lei n. 4.595/64. II. Não se aplica a limitação de juros de 12% ao ano prevista na Lei de Usura aos contratos de cartão de crédito. III. Nesses mesmos contratos, ainda que expressamente acordada, é vedada a capitalização mensal dos juros, somente admitida nos casos previstos em lei, hipótese diversa dos autos. Incidência do art. 4º do Decreto n. 22.626/33 e da Súmula n. 121-STF” (REsp nº 450.453/RS, Segunda Seção, Rel. para o acórdão Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 25/2/04)

Também:
“CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO. TAXA DE JUROS. LIMITAÇÃO. SÚMULA Nº 596-STF. – As administradoras de cartões de crédito inserem-se entre as instituições financeiras regidas pela Lei nº 4.595/64. – Cuidando-se de operações realizadas por instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, não se aplicam as disposições do Decreto nº 22.626/33 quanto à taxa de juros. Súmula nº 596-STF. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp nº 337.332/RS, Quarta Turma, Relator o Ministro Barros Monteiro, DJ de 24/11/03).
Sedimentou-se, assim, tanto na jurisprudência do STF quanto na do STJ o entendimento de que os juros não poderiam ser limitados a 12% ao ano, com base nas disposições da Lei da Usura ou nas do art. 192, § 3º, da Constituição Federal.

Por outro lado, reconheceu-se que a pactuação de juros não é ilimitada, e nem poderia ser diferente, porquanto o ordenamento jurídico repele, por meio de uma gama de normas dispositivas e principiológicas, as cláusulas leoninas. Na esteira desse raciocínio, surgiu, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a tese que considera nula a disposição contratual sobre juros que evidencie abusividade, aferida consoante taxa média de mercado praticada pelos bancos. Nesse sentido:
“Bancário e processual civil. Agravo no recurso especial. Ação de revisão. Contratos bancários. Taxa de juros remuneratórios. Dissídio não comprovado. - Nos termos da jurisprudência do STJ, não se aplica a limitação da taxa de juros remuneratórios pelo CDC, a menos que cabalmente demonstrada sua abusividade em relação à taxa média de mercado, o que, in casu, não ocorre.” (AgRg no REsp 935893/MT – Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI – 3ª Turma – DJe 06/11/2008.)

Embora a tese explanada no aresto represente uma evolução de pensamento na jurisprudência daquele tribunal, na medida em que descarta o pretendido liberalismo absoluto e a não-intervenção do Estado na celebração de contratos de massa, tão inutilmente defendida pelos bancos, ela não espelha, a meu juízo, a melhor aplicação do direito, como se demonstrará adiante.

A atividade de crédito, regularmente exercida, é bem-vinda, pois alavanca o crescimento econômico. Todavia, quando abusivamente exercida, caracteriza usura, que não produz riqueza, mas tão-somente a transfere, concentrando-a nas mãos de poucos. A usura é, sem dúvida, agente catalisador da pobreza, da marginalização, da desigualdade social e da concentração de riqueza, diametralmente oposta, portanto, aos mais elevados objetivos da República (art. 3º, CF).
“A usura em si, denominador comum de um conjunto de práticas financeiras proibidas. A usura é a arrecadação de juros por um emprestador nas operações que não devem dar lugar ao juro. Não é, portanto a cobrança de qualquer juro. Usura e juro não são sinônimos, nem usura e lucro: a usura intervém onde não há produção ou transformação material de bens concretos.” (LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 18.).

Fixada a premissa de que a usura é jurídica e moralmente repudiada pela sociedade, insta esclarecer que o que determina e qualifica um ato como usurário não é nenhuma qualidade de quem o pratica; mas característica do próprio ato em si, consistente no enriquecimento injusto do usuário, em razão do empobrecimento do tomador, tendo em vista a cobrança de juros excessivos, indo muito além de simples remuneração de capital.
Mesmo que não se admita a aplicação da Lei da Usura às instituições financeiras, como têm entendido os tribunais superiores, a cobrança escorchante de juros não deixa de ser usura e, por conseguinte, prática abusiva, contrária aos fins da sociedade. Essa prática malfere os princípios da boa-fé objetiva, da finalidade social do contrato e da propriedade, a moralidade, os bons costumes e o próprio interesse público.

O entendimento de que a Lei da Usura não se aplica às operações realizadas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional deve-se especialmente à Súmula 596 do STF, cuja origem remonta à década de 1970. Nessa época, o Governo Militar propugnava o crescimento econômico, se preocupava com a confiança dos banqueiros estrangeiros e das grandes multinacionais no Brasil, favorecendo novos investimentos, para combater os altíssimos índices de inflação e o crescimento brutal da dívida externa; por outro lado, a crise do petróleo (1973) fez com que a economia mundial passasse do crescimento à recessão, com a consequente elevação das taxas internacionais de juros e a dificuldade brasileira de exportação. É nesse cenário que nasceu a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal.

Essa Súmula, de 15/12/1976, decorre particularmente do voto do então Ministro Oswaldo Trigueiro, proferido no julgamento do RE 78.953, no sentido de que o art. 1º da Lei da Usura – frise-se: o artigo 1º – estaria revogado pela Lei 4.595/64, que dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias, e criou o Conselho Monetário Nacional. O entendimento deve-se, sobretudo, ao disposto no art. 4º, IX, dessa lei, que estatui competir ao Conselho Monetário Nacional “limitar, sempre que necessário, as taxas de juros”.
Entretanto, antes de qualquer consideração a respeito, deve-se atentar a que a referida lei atribuiu ao Conselho Monetário Nacional, criado com poder deliberativo máximo do Sistema Financeiro Nacional, competência, nos exatos termos da lei, para limitar as taxas de juros, sempre que necessário.

Ressalte-se que limitar as taxas de juros não significa estipular livremente tais taxas, liberando-as, como entendem alguns. Limitar não é senão restringir, impor limites, sem que isso necessariamente implique revogação do art. 1º da Lei da Usura. Logo, competência para limitar será competência para estipular, somente e tão-somente quando a estipulação tiver o propósito de limitação, isto é: estipular dentro do limite.

No entanto, o Decreto 22.626/33, a Lei da Usura, em seu art. 1º, já limitava as taxas de juros, isto é, o Decreto impunha limite, o que fez o Supremo entender que, com a lei nova, a de 1964, a limitação imposta pela Lei da Usura não poderia prevalecer, até porque, na época, em razão do contexto econômico do País, o limite da Lei da Usura não era observado, tendo em vista os altíssimos índices de inflação, que tornavam inviável, não só para os bancos mas também para os cidadãos, a estipulação das taxas de juros em até um por cento ao mês.
Nisso, o Ministro Xavier de Albuquerque, no mesmo julgamento daquele RE 78.953, concluiu que “a cláusula, ´sempre que necessário’, contida nesse preceito [o art. 4º, IX, da Lei 4.595/64]” parecia “mostrar que deixou de prevalecer o limite genérico do Dec. 22.626/33; a não ser assim, jamais se mostraria necessária, dada a prevalência de um limite geral, único, constante e permanente, preestabelecido naquele velho diploma legal, a limitação que a nova lei atribuiu ao Conselho” (apud Rizzardo, Arnaldo. Contratos de Crédito Bancário. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 445).

Parece-me razoável sustentar que, a considerar a limitação da Lei da Usura, a disposição do art. 4º, IX, da Lei 4.595/64 seria despicienda, pois, numa época em que a limitação da Lei da Usura não se adequava à realidade econômica do País, no contexto interno e internacional, entender que o Conselho Monetário Nacional só poderia limitar os juros a uma taxa abaixo de 1% (um por cento) ao mês seria entender que essa competência limitativa era fictícia, pois, dificilmente, seria viável ou conveniente exercê-la.
O entendimento, como afirmado, ensejou a Súmula 596 do STF, que estabelece: “As disposições do Decreto nº 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.”
Veja-se, a respeito, a explanação de Rui Portanova, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“Com efeito, o enunciado nº 596 do Supremo Tribunal Federal surgiu, principalmente, porque naquela época não havia correção monetária nos mesmos moldes de hoje e, com isso, o sistema financeiro nacional não lograva repor o valor real da moeda, no mesmo passo em que obtinha a remuneração do capital mutuado. Sem a correção monetária, efetivamente, o limite de juros de 12% ao ano levaria o sistema financeiro à completa inviabilidade” (Limitação dos Juros nos Contratos Bancários: ações e defesas dos devedores. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 75).
Insta, contudo, ressaltar que o art. 1º do Decreto 22.626/33 não foi revogado pela Lei 4.595/64. A dicção da Súmula 596 é de que as disposições da Lei da Usura apenas não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados pelas instituições financeiras.
Assim como a Lei da Usura veio atender às expectativas de seu tempo, objetivando impedir e reprimir os excessos praticados pela remuneração exagerada do capital, no contexto mundial marcado pela Crise de 1929 e no cenário interno pós-revolução de 1930, marcado pelo teor social da Carta de 1934, visando ao desenvolvimento das classes produtoras –, assim também a Lei 4.595 de 31 de dezembro de 1964, proveniente de uma época de séria crise não só econômica mas também política no País (basta lembrar a ditadura militar instaurada a partir de abril de 1964), veio atender aos anseios de um Poder Executivo forte, preocupado de regular e controlar o valor da moeda, os surtos inflacionários, a dívida externa, os investimentos de bancos estrangeiros e das multinacionais, coordenando as políticas monetária, creditícia, orçamentária, fiscal e a dívida pública, para assegurar a liquidez e solvência das instituições financeiras do Brasil.
No entanto, com a Constituição Federal de 1988, o País deixou de ser uma ditadura e passou a Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos.
À vista disso, a Constituição de 1988 atribuiu ao Sistema Financeiro Nacional o mister de promover o desenvolvimento equilibrado do País e servir aos interesses da coletividade. Estabeleceu que ele seria regulado por lei complementar (art. 192, caput, em sua redação original), e, implantando a independência efetiva dos Poderes, atribuiu, no art. 48, III, exclusiva competência ao Congresso Nacional para dispor sobre “matéria financeira, cambial e monetária, instituições financeiras e suas operações”. No art. 68, § 1º, prescreveu: “não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional”.
Não bastasse isso, o art. 25, caput, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou: “Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional”.
Assim, a Lei 4.595/64, que concedia competência ao Conselho Monetário Nacional para regular a matéria, estaria revogada num prazo de 180 dias da promulgação da Constituição, ou seja, 3 de abril de 1989. Foi o que aconteceu. Como a lei complementar referida no caput do art. 192 da Constituição não viera à lume, o Executivo procurou prorrogar o prazo de 180 dias fixado no art. 25, caput, do ADCT, editando a Medida Provisória n. 45, publicada no Diário Oficial em 3 de abril de 1989 (último dia do prazo de 180 dias). Àquela época, porém, o art. 62 da Constituição Federal, que regulamenta a edição de medida provisória, possuía um parágrafo único, assim descrito:
“As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.
Logo, para que não tivesse a eficácia perdida, a Medida Provisória n. 45 precisaria ser convertida em lei, no prazo estipulado no art. 62, parágrafo único da Constituição. Isto, no entanto, não ocorreu, e, quando o Executivo editou uma segunda medida provisória, a de n. 53, em 3 de maio de 1989, a Medida Provisória n. 45 já havia perdido eficácia. Conseguintemente, o Conselho Monetário Nacional perdeu a competência para limitar taxas de juros, pois, com a Constituição de 1988, a regulamentação da matéria passou a lei complementar de competência do Congresso Nacional, sem possibilidade de delegação.
Não obstante isso, por meio de sucessivas medidas provisórias, o Executivo procurou prorrogar a competência do Conselho Monetário Nacional, até culminar na Lei 8.392/91, que, em seu artigo 1º, prorrogou, até a data da publicação da lei complementar referida no art. 192, caput, da Constituição, o prazo que mantém a competência do Conselho Monetário Nacional para limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários ou financeiros, inclusive os prestados pelo Banco Central do Brasil.
Sem embargo, independentemente das controvérsias acerca da reedição de medida provisória pelo Executivo antes da Emenda Constitucional n. 32 e da Súmula 651 do STF (“a medida provisória não apreciada pelo Congresso Nacional podia, até a EC 32/98, ser reeditada dentro do seu prazo de eficácia de trinta dias, mantidos os efeitos de lei desde a primeira edição”) –, o fato é que, a partir de 1994, com o Plano Real, a inflação deixou de ser um dos maiores problemas que assolavam o País, como esclarece Rui Portanova:
“Na época, a Lei da Reforma Bancária era quase uma necessidade conjuntural, em face do período inflacionário então vivido. Disso dá conta a decisão do Supremo Tribunal Federal, na apreciação do Recurso Extraordinário nº 78.953, o que serviu de base à Súmula 596. Aquela preocupação, hoje, já não faz mais sentido. De um lado, porque, como visto, na caracterização constitucional do que sejam juros reais, não está incluída a correção monetária. De outro lado, porque a correção monetária, até então mal compreendida, passou a ser admitida, inclusive na via legislativa, também a partir de 1964, como é de conhecimento geral e se pode constatar de diversos textos doutrinários” (ob. cit., pp. 74 e 75).
Diante disso, retomam-se alguns argumentos escoliados, para tecer as seguintes considerações: a) a Lei 4.595/64, art. 4º, IX, atribui ao Conselho Monetário Nacional a competência para limitar as taxas de juros, e não para estipulá-la; b) o art. 1º Decreto 22.626/33 não foi revogado pela Lei 4.595/64, e a Súmula 596 do Supremo não discrepa desse entendimento, pois apenas estabelece que não é aplicável às instituições financeiras.
Uma lei não se revoga pelo desuso e, diante da nova contextura, muito diferente daquela que justificou a Súmula 596, não há motivos aceitáveis que justifiquem não aplicar a Lei da Usura como limitadora da cobrança de encargos abusivos. A realidade social da qual não prescinde o direito já não é mais a mesma, e a Lei da Usura – mormente em seu art. 1º – muito embora estivesse em desuso, nem por isso perdeu a eficácia jurídica, como ensina Maria Helena Diniz:
“Se uma norma for sintaticamente eficaz, por apresentar condições técnicas de atuação, mas semanticamente inefetiva, por ser regularmente desobedecida ou inaplicada pela autoridade, por não se adaptar ao tempo, ao local, às convicções e aos pontos de vista valorativos da sociedade, fala-se em inefetividade pragmática no sentido de desuso, isto é, omissão que ocorre diante de fatos que constituem condições para a aplicação da norma. A norma em desuso não perde, enquanto não for revogada por outra, a eficácia jurídica, apesar de ser regularmente desobedecida.” (Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 63. Grifo nosso.)
Por esta razão, o entendimento que fundamenta na Súmula 596 deve ser revisto, sendo oportuno transcrever, a respeito do papel da súmula, o que já afirmou o Supremo Tribunal Federal, em voto do eminente Ministro Moreira Alves:
“No tocante ao dissídio com a súmula, ele não ocorre, uma vez que esta não é norma jurídica, mas representa a cristalização da jurisprudência da Corte, e seu alcance se afere das decisões tomadas nos precedentes em que ela se baseia. A súmula é mero instrumento de trabalho que simplifica o julgamento, uma vez que, com sua referência, o julgado não precisa de repetir os fundamentos que deram margem à tese enunciada, e isso porque as partes litigantes, para saberem quais sejam eles, dispõem dos acórdãos que deram margem a ela, e onde se encontram tais fundamentos.” (STF - AI-AgR 121969/RJ – 1ª T. – J. 6.11.1987.)
Se a súmula decorre logicamente de uma série de decisões que lhe são precedentes, é importante ter em conta se a realidade social, política e econômica em que essas decisões foram proferidas ainda se apresenta atual, a ponto de justificar a referência à mesma súmula. O Decreto 22.626/33 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que, de resto, continha disposição semelhante à do art. 1º, em seu art. 192, § 3º. Tanto é assim que os Tribunais Superiores não deixaram de reconhecer a aplicação da Lei da Usura, para coibir e afastar a abusividade praticada por instituições financeiras, como demonstra os seguintes arestos do Superior Tribunal de Justiça:
“AGRAVO REGIMENTAL – AGRAVO DE INSTRUMENTO – CÉDULA DE CRÉDITO COMERCIAL – JUROS REMUNERATÓRIOS – LIMITAÇÃO – 12% AO ANO – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA – VEDAÇÃO – MULTA MORATÓRIA – REDUÇÃO PARA 2%. CONTRATO POSTERIOR À LEI 9.298/96 – 1. Omitindo-se o Conselho Monetário Nacional em fixar as taxas de juros aplicáveis aos títulos de crédito comercial (Decreto-Lei 413/69 c/c o art. 5º da Lei 6.840/80), prevalece o art. 1º, caput, da Lei de Usura, que veda a cobrança de juros em percentual superior a 12% ao ano, ficando afastada a Súmula 596 do STF, porquanto se dirige à Lei 4.595/64, derrogada pelo diploma legal de 1980. 2. A comissão de permanência não é cabível nas cédulas de crédito comercial, em face da disciplina específica do artigo 5º, parágrafo único, do Decreto-Lei 413/69. Precedentes.” (STJ – AGA 200601132850 – (780866) – MG – 4ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – DJU 05.11.2007 – p. 00271.)
Mais:
“AGRAVO REGIMENTAL – RECURSO ESPECIAL – CONTRATO DE CRÉDITO BANCÁRIO – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA – CUMULAÇÃO COM JUROS REMUNERATÓRIOS – DESCABIMENTO – CAPITALIZAÇÃO MENSAL – IMPOSSIBILIDADE – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – CARACTERIZAÇÃO – (...) A capitalização dos juros somente é admitida em casos específicos, previstos em Lei (cédulas de crédito rural, comercial e industrial), ut Súmula 93/STJ, não ocorrentes na espécie, constatação apta a fazer incidir a letra do art. 4º do Decreto nº 22.626/33 e a Súmula 121/STF. Precedentes.” (STJ – AGRESP 200301947507 – (602184 RS) – 4ª T. – Rel. Min. Fernando Gonçalves – DJU 26.09.2005 – p. 00383)
No mesmo sentido, o Código Civil de 2002 – ajustado ao relevante papel que o Direito Constitucional passou a desempenhar no âmbito do sistema jurídico, principalmente com a advento da Constituição de 1988 e do fenômeno da “constitucionalização do direito privado” –, veio reforçar, em seu art. 591, a preocupação com a abusividade dos encargos nos contratos de mútuo com fins econômicos, impondo os mesmos limites da Lei da Usura para as taxas de juros, autorizando a capitalização anual.
A Emenda Constitucional nº 40 de 29 de maio de 2003 produziu diversas alterações no art. 192 da Constituição Federal. Lembra Alexandre de Moraes (Direito Constitucional. 20. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2006, p. 754) que uma importante mudança foi a determinação da desnecessidade de lei complementar única para disciplinar todo o sistema financeiro nacional. Com efeito, depois da Emenda 40, assim ficou mencionado artigo:
“Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.” (Grifei)
Sem embargo da observação do ilustre constitucionalista, partilho do entendimento de que, mesmo antes da Emenda 40, a dicção legal do art. 192 da Constituição já permitia a regulamentação da matéria por mais de uma lei complementar. Como anota André Ramos Tavares,
“a orientação geral é de que matérias autônomas, que independam umas das outras, não necessitam de previsão em uma única lei, ainda que a Constituição esteja a referir-se a uma lei única, por estar-se utilizando da expressão (lei complementar) no singular. Só não se apartam assuntos que sejam incindíveis por sua própria natureza.” (Curso de Direito Constitucional. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.156.)
Assim, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n. 4, ao analisar a questão da autoaplicabilidade do § 3º do art. 192 da Constituição, entendeu que a matéria dependia de regulamentação de outros tópicos do mesmo art. 192, sustentando a necessidade uma única lei complementar a respeito do assunto, já que a limitação dos juros só podia surgir de regulamentação abrangente e completa da matéria.
O entendimento do Supremo, a meu ver, depois da Emenda 40, já não pode prevalecer. O texto da Constituição agora é expresso no sentido de que a matéria pode ser regulamentada por leis complementares, sem necessidade de lei complementar única. Por outro lado, não me parece adequado ao Judiciário sustentar, à vista da nova redação do art. 192 da Lei Maior, que, ainda assim, a regulamentação dos juros está na dependência da relação lógica das leis que tratam da matéria, pois isso implicaria intrometer-se nos atos do Poder Legislativo e julgar da pertinência ou não de cada matéria, não em relação à Constituição, mas umas em relação às outras, sob um ponto de vista não apenas jurídico. Essa postura implicaria negar aplicação à Lei da Usura e ao Código Civil; implicaria, como implica, atribuir ao Conselho Monetário Nacional uma eterna discricionariedade para regulamentar uma matéria que a própria Constituição reservou ao Congresso Nacional, por meio um processo legislativo menos flexível; seria liberar a abusividade praticada pelas instituição financeiras, ao imutável argumento de que a matéria não está suficientemente regulamentada, contrariando a Constituição e as leis vigentes, quando a atual conjuntura do País é muito diferente daquela em que surgiu a Súmula 596 do STF.
Já agora, afastada a divergência de uma lei complementar única para a regular o sistema financeiro nacional, e em face da inércia do Congresso Nacional em regulamentar a matéria, o Decreto 22.626/33, como limitador da taxa de juros e outras abusividades no contratos de mútuo, foi não apenas recepcionado pela Constituição Federal, mas também recepcionado com natureza de lei complementar. Esse é o entendimento que decorre da afirmação de que a taxa de juros deve ser limitada por lei complementar.
Logo, a Lei da Usura continua vigente e eficaz, tem papel limitador dos juros, proíbe a capitalização mensal deles, tem natureza de lei complementar e, portanto, só pode ser alterada por outra lei complementar.
Registre-se, por oportuno, que o entendimento do Supremo Tribunal Federal, consistente no fato de a Lei da Usura não se aplicar às instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, materializado na Súmula 596 daquele Pretório, remonta a uma época em que o País sofria com uma inflação inexorável, cujos índices eram, muitas vezes, superiores a 1.000% ao ano (Figueiredo, Alcio Manoel de Sousa. Juros Bancários: limites e possibilidades. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2008, p. 21 e ss.), de molde que os próprios cidadãos brasileiros conviviam com a atualização constante de seus recursos. O contexto atual, porém, é completamente outro, de forma que a discriminação entre os contratos civis de mútuo e os contratos firmados pelas instituições financeiras é flagrantemente afrontosa ao princípio constitucional da isonomia, por considerar crime a usura praticada pelo cidadão comum, mas não impor limites às taxas de juros cobradas pelas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, permitindo a livre pactuação dos juros, sem considerar seus reflexos sociais e os fins da lei.
Os princípios gerais de direito, como a vedação ao enriquecimento sem causa ou a desproporção exagerada nas relações negociais; os princípios constitucionais, tal como a dignidade da pessoa humana e a função social da propriedade; os princípios contratuais, a exemplo da função social do contrato, da equivalência material; ainda do regramento legal em vigor, já que mesmo se admitindo a sujeição das instituições financeiras aos preceitos da Lei 4.595/64, aplica-se, analogicamente, o Decreto-lei nº 22.626/33, bem como a moral e os bons costumes, que repudiam a prática da usura; ou ainda o lucro exagerado à custa do desenvolvimento econômico e social, vedam peremptoriamente a prática de juros em taxas superiores a 12% ao ano.
Ademais, a falta de tratamento isonômico entre os ruralistas, que pagam juros de 3% a 12%, no máximo, ao ano, e a grande massa de consumidores não ruralistas, que pagam juros de até (cheque especial) 12% ao mês. Está certo os ruralistas pagarem juros com taxas menores, pois representam setor importante do seguimento produtivo; errado está os não ruralistas serem penalizados com taxas de juros excorchantes, pois também representam setor importante da vida nacional.
Daí que, por qualquer ângulo que se analise a questão posta, a revisão e consequente limitação dos juros remuneratórios em 12% ao ano é medida que se impõe.
A súmula 596 do Supremo Tribunal Federal “foi editada numa época em que a única forma de se repor as perdas inflacionárias e remunerar o capital era através dos juros. Note-se que não havia um mecanismo de correção monetária. Assim, a partir do momento que passou a ser possível repor a desvalorização da moeda por índice próprio, a súmula 596 perde a sua finalidade e passa a ser, não instrumento de manutenção do sistema financeiro, mas passaporte para a usura”. (AC. n.º 194247698 – 4ª Câm. Cível do TARGS – Rel. Juiz Marcio Puggina, “O Limite Constitucional dos Juros Reais”, Editora Síntese, Gabriel Wedy, p. 37/38, 1997.)
Nos dias atuais, as elevadas taxas de inflação, que consumiam rapidamente o poder aquisitivo da moeda, são apenas sombra, um esboço da insegurança econômica de outrora. Assim, a excepcionalidade econômica circunstancial, que admitia e quiçá exigia uma regulação mais branda da matéria, não existe mais, daí que não se justifica a liberdade de mercado defendida pelas instituições financeiras. Equivocam-se aqueles que consideram as peculiaridades do País um fator preponderante na política de juros praticada no mercado nacional. O simples fato de o País atuar no mercado financeiro internacional, seja na pessoa do próprio Estado ou de instituições privadas, impõe forte influência daquele nas regras locais, pois decisões são tomadas segundo critérios macroeconômicos.
Por oportuno, tendo em vista os fins sociais da Lei da Usura, da Lei 1.521/51 (crimes contra a economia popular) e da própria Lei 4.595/64, que instituiu o Conselho Monetário Nacional, torna-se imperioso concluir pela aplicação da Lei da Usura aos contratos bancários, como fator limitador dos juros abusivos, conclusão que decorre da própria harmonia dos dispositivos legais mencionados, em consideração, ademais, aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.
Entendo que a dificuldade não está em sustentar a aplicação da referida Lei da Usura aos contratos bancários; difícil é sustentar a sua não-aplicação, já que ao juiz cumpre aplicar a lei, e não negá-la. Se o entendimento no sentido da aplicação da lei decorre do sistema jurídico (o ordenamento jurídico; os princípios gerais de direito, como a boa-fé objetiva e a equidade; os princípios fundamentais, como a dignidade humana; as normas de nítido caráter social, como Código de Defesa do Consumidor) e da própria lei em si, que não contém ressalvas sobre as hipóteses de incidência, então os dispositivos da Lei da Usura podem e devem ser utilizados para limitar os juros, ao lado do Código Civil, e demais normas limitadoras da abusividade, como o Código de Defesa do Consumidor.
Ainda que se reconheça a competência do Conselho Monetário Nacional para dispor sobre os juros, segundo disposição contida na Lei a 4.595/64, referido órgão nunca se desincumbiu desse mister. Esse fato, entretanto, diferentemente do que sustentam as instituições financeiras e alguns tribunais, não conduzem à conclusão, juridicamente insustentável, a meu ver, de que os juros não sofrem nenhuma limitação. Por tudo quanto foi dito, os juros são limitados pelo sistema jurídico e, portanto, as taxas abusivas devem ser coibidas pelo Poder Judiciário, como, aliás, consignou o Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar, em voto louvável, proferido no julgamento do Resp 271.214/RS, nestes termos:
“É certo que não cabe ao juiz interferir genericamente no mercado para estabelecer taxas, mas é seu dever intervir no contrato que está julgando, para reconhecer quando o princípio do equilíbrio contratual foi violado, a fim de preservar a equivalência entre a prestação oferecida pelo financiador e a contraprestação que está sendo exigida do mutuário. É função dele aplicar o dispositivo legal que proíbe cláusulas potestativas; é função dele verificar se no modo de execução do contrato não há perda substancial de justiça, com imposição de obrigação exagerada ou desproporcionada com a realidade econômica do contrato. Para isso, sequer necessita invocar o disposto no Código de Defesa do Consumidor, uma vez que o sistema do nosso Direito Civil é suficiente para permitir a devida adequação.” (Grifamos.)
Assim, o sistema do nosso Direito Civil é suficiente para permitir a limitação das taxas de juros.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a despeito da posição ultraliberal em relação aos juros, tem feito uso do parâmetro de 12% ao ano, ao reconhecer a abusividade dos contratos com previsão de incidência de juros remuneratórios sem especificação de taxas, adequando-as ao ordenamento:

“PROCESSO CIVIL – RECURSO ESPECIAL – NEGATIVA DE PROVIMENTO – AGRAVO REGIMENTAL – CONTRATO BANCÁRIO – JUROS REMUNERATÓRIOS – TAXA NÃO ESTABELECIDA NO CONTRATO – PACTUAÇÃO NÃO DEMONSTRADA – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA – INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO – DESPROVIMENTO. 1. Encontra-se pacificado nesta Corte o entendimento de que, quanto aos juros remuneratórios, uma vez não estabelecida no contrato a taxa de juros a ser aplicada, deve ser imposta a limitação de 12% ao ano, vez que a previsão de que o contratante deve arcar com os juros praticados no mercado financeiro é cláusula potestativa, que sujeita o devedor ao arbítrio do credor ao assumir obrigação futura e incerta. Precedentes. (...)” (Ag.Rg. no REsp nº 723.778/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 4ª Turma, DJ de 21/11/2005)
E mais:
“Agravo regimental. Recurso especial a que se negou seguimento. Contrato bancário. Código do Consumidor. Juros remuneratórios. Limitação. Precedentes. 1. Não havendo previsão no contrato do percentual dos juros remuneratórios, correta a decisão que impôs a limitação a 12% ao ano. 2. Impossibilidade de reexame da questão em face do óbice da Súmula nº 5/STJ. 3. Agravo regimental desprovido.” (Ag.Rg. no REsp nº 646.386/RS, Relator Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 1º/2/2005)
As relações contratuais assumiram notória relevância econômica e social, exigindo do Estado proteção e regulação, de forma a viabilizar a consecução dos objetivos fundamentais da República (construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos. Surge, assim, a figura do dirigismo contratual, proclamando a supremacia dos interesses coletivos, valorizando, homenageando e respeitando a dignidade da pessoa humana, ao lado de princípios e preceitos de envergadura constitucional.
Nessa realidade da noção de contrato, extrai-se, como principal característica, a regulamentação legal de cláusulas, a fim de coibir abusos decorrentes da desigualdade técnica e, especialmente, econômica entre as partes. A mitigação, ou melhor, a adequação do princípio da autonomia da vontade a essa nova realidade é uma tendência mundial, pois também as outras nações reconhecem a importância das relações contratuais, ainda mais acentuada em tempos de globalização.
Os contratos, em especial aqueles que têm por objeto o crédito, não podem produzir, sozinhos, o efeito de reduzir o devedor ao patamar patrimonial inferior àquele anterior à pactuação. O mútuo deve, pelo contrário, trazer benefícios econômicos tanto ao tomador do crédito quanto à cessionária, pois essa é sua essência, sua função social. Derivado de todos esses relevantíssimos preceitos, e sintetizando-os, formulou-se o princípio da equivalência material, que impede, basicamente, que uma parte aufira lucros desproporcionais em detrimento da outra, mantendo sempre equilibrada a relação contratual. Bastante elucidativa a lição de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, citando Paulo Luiz Netto Lôbo:

“O princípio da equivalência material busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias cega de cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico ‘pacta sunt servanda’ passou a ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas” (Novo Curso de Direito Civil. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. IV, t. 1º, p. 59-60).

Esse princípio produz efeitos tanto na esfera civil (lesão, estado de perigo, teoria da imprevisão) quanto na administrativa (equilíbrio econômico-financeiro), permitindo a adequação das cláusulas e obrigações, com vistas à manutenção da relação contratual, segundo os elevados parâmetros de justiça, honestidade e boa-fé, mantendo, sempre que possível, a comutatividade entre direitos e obrigações.
O Código de Defesa do Consumidor contém parâmetros bastante objetivos, e, por isso, extremamente úteis, acerca da verificação da abusividade. Dispõe, com efeito, referido diploma legal:
“Art. 51. São nulas de plano direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que:
(...)
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.
(...)
§ 1º – Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que:
I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;
II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou o equilíbrio contratual;
III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.”
O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que seriam abusivas somente as taxas de juros pactuadas acima da “taxa média de mercado”, definida pelo Banco Central. Esse entendimento, em meu entender, conduz à usura oficializada, que é, como afirmado, repudiada pelo ordenamento jurídico brasileiro, daí não poder prevalecer, sendo oportuno transcrever, uma vez mais, excerto do brilhante voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que assim se pronunciou:
“O entendimento que hoje predomina na Segunda Seção é francamente favorável à cobrança dos juros de acordo com os índices fixados pelos bancos, sem outro limite senão a taxa média de mercado e sem possibilidade de sua revisão pelo juiz, salvo quando o mutuário comprovar que o banco está cobrando dele mais do que cobra de outro, em situação similar. Como dificilmente ocorrerá tal hipótese (e, caso ocorra, implica indevida transferência ao mutuário da carga da prova do abuso, a ser feita possivelmente em perícia de difícil e onerosa realização), o resultado prático daquele julgamento é a liberação dos juros, sejam remuneratórios, sejam moratórios, sem nenhum controle efetivo. Controle administrativo não existe, pois não se conhece limite imposto pela autoridade administrativa, e o controle judicial fica agora condicionado a uma prova irrealizável ou de difícil realização.Todos sabemos que as taxas praticadas no Brasil chegam a resultados muitas vezes absolutamente inaceitáveis do ponto de vista ético. É certo que a Escola de Chicago prega a “interpretação econômica do contrato”, com absoluta submissão ao interesse do mercado, mas é inaceitável proibir ao juiz corrigir o evidente excesso presente no caso submetido a seu julgamento, apenas porque se trata de um abuso praticado massivamente contra todos. As taxas de mercado podem ser aceitas para os negócios em geral, quando houver efetiva concorrência, adequadamente fiscalizada pelo Estado, possibilidade real de escolha, o que de nenhum modo acontece. Quais as opções e o poder de negociar as cláusulas de contrato bancário que se permitem ao nosso pequeno agricultor, ou ao microempresário? Se o Estado libera os juros e o Tribunal se recusa a afastar o abuso, algumas situações podem causar perplexidade.” (STJ - REsp 466.979/RS – 4. T. – J. 22.4.2003. Grifei)
No mesmo voto, o Ministro Ruy Rosado de Aguiar transcreve fragmento do voto do Ministro Pádua Ribeiro, proferido no REsp 407097/RS, que assim se manifestou:
“Hoje, os bancos sentem-se muito à vontade para cobrar juros remuneratórios a taxas mensais que superam, em muitos casos, o dobro da inflação anual, sobre débitos corrigidos monetariamente, adotando, por inércia, procedimentos que lhes são altamente convenientes, vigentes na época da inflação exacerbada.Argumentam que praticam taxas de mercado. Mas que mercado?Nos Estados Unidos existem cerca de 14 mil bancos e a taxa de juros média não chega a 6% ao ano. No Brasil, em 1997, tínhamos 206 bancos, em 2002 temos aproximadamente 180, com um predomínio quase absoluto dos 10 maiores, que detinham, em 2000, 76,70% dos depósitos, caminhando para 85% nos próximos anos (fonte: Austin Asis).O Código de Defesa do Consumidor, por meio dos artigos 6°, inciso V, 39, inciso V, 51, inciso IV e 52, possibilita que o Judiciário defina regras de eqüidade para implantar ou restabelecer o equilíbrio na relação dos bancos com os seus clientes quando estes se sintam em desvantagem exagerada. Não há lugar para o sofisma que as instituições costumam apresentar quando questionadas perante o Poder Judiciário segundo o qual, se os juros não estão limitados é permitido cobrar qualquer taxa.No caso em tela, o documento de fls. 63-463, trazidos aos autos pelo recorrente, dá conta da cobrança de juros à taxa mensal que varia de 9,90% a 13,58%, incidente sobre os valores postos à disposição do cliente em sua conta corrente, a partir de agosto de 1996, quando já vigorava e surtia efeitos o plano de estabilização do Governo Federal. Não há, nesse caso, uma vantagem exagerada? Há. E contra tal fato é muito difícil divisar a plausibilidade de qualquer argumento.”
Seguindo o raciocínio trilhado pelo STJ, não se poderia considerar abusivos os juros cobrados pela operadoras de cartão de crédito (13,5% ao mês) e o cheque especial (8,73% ao mês e 197,75% ao ano), sem mencionar a capitalização mensal, prática também usual no mercado, ainda que só admitida quando expressamente autorizada por lei especial. Muito mais do que abusivas, essas taxas de juros são inarredavelmente usurárias e criminosas. É desnecessário afirmar que taxas de juros nesses patamares, praticadas regularmente no mercado, constituem vantagem exagerada àquele que concede o crédito, pois ofendem princípios fundamentais do direito e revelam-se excessivamente onerosas ao mutuário.
A propósito do assunto, lembra Alcio Manoel de Sousa Figueiredo, em obra monográfica sobre o assunto, que o entendimento do STJ “na prática autorizou as instituições financeiras a fixarem taxas de juros moratórios e remuneratórios que melhor lhes convier, sem qualquer limite, desde que não superior à taxa média de mercado. Acontece, todavia, que a estipulação da taxa média dos juros praticados no mercado e apurada pelo Banco Central do Brasil, fica a critério exclusivo das instituições financeiras, ou seja, os bancos é que fixam as taxas de juros que serão aplicadas nos empréstimos bancários” (Juros Bancários: limites e possibilidades. 2. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2008, p. 61).
Assim, é possível concluir que a) a Lei 4.595/64 foi revogada pela Constituição, tendo em vista que a Medida Provisória n. 45/1989 não foi convertida em lei no prazo estabelecido pelo então parágrafo único do art. 62 da Constituição, devendo aplicar-se o Decreto 22.626/33 como limitador das taxas de juros; b) sem embargo, é possível sustentar que o Conselho Monetário Nacional não tem competência para fixar livremente as taxas de juros, mas apenas para limitá-las, quando for necessário, devendo limitá-las nos limites da lei; c) as taxas de juros estão limitadas pelo art. 1.062 do Código Civil de 1916; d) o Decreto 22.626/33 não foi revogado pela Lei 4.595/64, tanto que continua a ser aplicado pelo STJ, como limitador de juros abusivos; e) a Emenda Constitucional n. 40/2003 deixou claro que o sistema financeiro nacional pode ser regulado por leis complementares, o que permite reconhecer que o Decreto 22.626/33 foi recepcionado pela Constituição como lei complementar; f) o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 51, autoriza o Judiciário limitar os juros abusivos.
Assim, com fundamento do Decreto 22.626/33, no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, entendo que a taxa dos juros contratuais, sejam moratórios, sejam remuneratórios, não pode ser superior a 12% ao ano, sob pena de redução.
Posto isso, divirjo do eminente Relator.

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